Ser homem e ser pai. Algumas características do complexo emocional machista
- André Vieira dos Santos
- 10 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Em minhas andanças pela clínica tenho percebido cada vez mais que ser homem e ser pai em nossa sociedade são formas de existir ainda muito desumanizadas. Digo isso, porque o principal problema manifesto em quase todos eles é, por um lado, o controle intenso e, por outro, a exacerbação de certas emoções. Homem não chora. Se chora, tem vergonha e se esconde para ninguém ver. Regula, controla a tristeza, vista como debilidade. Imagine um corpo gastando energia excessivamente para o evitamento da expressão da tristeza. Certamente, se essa emoção fluísse, não teria havido tanto gasto de energia.
O homem tem que ser duro e, muitas vezes, essa dureza vem acompanhada de raiva. O pavio curto paterno dentro de casa com a esposa e com os filhos e a falta de paciência para escutar alguém próximo com problemas pessoais são exemplos clássicos: a esposa é “chata” e “vive reclamando”, os filhos só obedecem pelo medo, os amigos quando passam por problemas são “frescos”. Ele não fala ou fala pouco sobre o que sente. Eis uma parte importante do complexo emocional do homem numa sociedade machista: frear intensamente a expressão da tristeza e do amor e exacerbar a raiva.
Quando um homem estranha essa forma de ser, as coisas vão ficando estranhas para ele. Um bom exemplo é quando ele se torna pai e se sensibiliza com o cuidado dos filhos e das filhas. Testemunhei algumas vezes na clínica, homens aos prantos dizendo: “Não quero criar minha filha como meu pai me criou”. Ao passo que a reflexão se aprofunda e as emoções vão se revelando, um novo estranhamento vem à tona: os amigos homens sem filhos não estão dispostos a escutar essa experiência, muito menos a acompanhá-la. Em muitos casos, o recém pai perde grande parte dos amigos homens sem filhos. É que, quando deixou de ser aquele homem presente nos bares até altas horas, porque obviamente não conseguiria dar conta dos afazeres em casa no dia seguinte, e muito menos estar presente no cuidado com as crianças, se viu sem muitos dos antigos amigos. Um não-diálogo entre homens pais e homens sem filhos começa a acontecer, de modo que parece difícil de se entender que a nova vida e as novas demandas envolvidas no cuidado de um bebê não são compatíveis com as formas antigas de encontro e de espaços frequentes das relações entre amigos homens: o bar, a madrugada, a boemia... O não-diálogo é parte do complexo emocional machista se expressando nas relações fraternas.
Paulatinamente, essas relações de amizade se empalidecem. Aquele homem pai pode acabar encontrando novas amizades, nas amigas de sua esposa que participam do processo de cuidado de seus filhos ou em pais dos amiguinhos de seus filhos, abertos a esse novo homem que se humaniza no cuidado.
Agora pensem comigo: como se forma nossa capacidade de termos consciência de nossas emoções a partir do rígido complexo emocional machista?
A emoção não é algo fora do corpo, mas justo o contrário. Envolvem uma série de respostas fisiológicas em interação com o sistema nervoso central, coração, pulmão, músculos da face entre tantos outros. Às vezes sentimos parte desses acontecimentos em nosso corpo acompanhando nossas emoções; outras vezes não conseguimos nomear o que sentimos. Contudo, a grande maioria dessas coisas que acontecem em nós passam batido de nossa capacidade de termos consciência delas. Tudo isso é um processo natural do qual não se pode escapar.
Entretanto, se nascemos numa sociedade onde figuram relações de poder nas quais o homem é tido como superior à mulher, nossa subjetividade será formada de tal maneira que nossas emoções estarão configuradas a partir do complexo emocional machista. Dito de outra maneira: o processo natural, em desenvolvimento, de sentirmos nossas emoções encontra um ambiente cultural e ideológico que seleciona e modula quais emoções precisam ser expressas e quais inibidas, com tais ou quais intensidades. Nessa condição de relação social familiar a criança querendo ser como o pai, tendencialmente, falará pouco de si, inibirá as emoções de amor e de tristeza e expressará com mais intensidade a raiva e a impaciência nas relações com os outros. Dificilmente a consciência dessa inibição das emoções e da expressão de outras é despertada, pois é vista como se fosse natural, óbvia. Contudo, quando as dificuldades impostas pela rigidez do complexo emocional machista começam a limitar a vida, o sofrimento aparece com certas feições, tais como:
“Minha namorada me disse que eu não falo muito de mim…”.
“Acho muito estranho pensar que lido com minha namorada de forma muito parecida com a qual meu pai se relacionava com minha mãe…”
“Meu pai me dizia para eu não ficar de frescura, mas eu não sou como ele…”
“Às vezes, quando sou duro com meu filho, lembro do que meu pai fazia comigo…”
O espaço clínico pode auxiliar a sentir e refletir como e o quanto encarnamos singularmente, com nossas próprias histórias de vida, o complexo emocional machista. Se humanizar no cuidado com o outro, negando a reprodução de formas clássicas (e caducas) de ser homem e de ser pai e inventando formas novas, mais sensíveis e atentas à vida ao redor, diz também sobre as relações amorosas, fraternais e sociais que queremos construir.
Sugestões de leituras:
Primeiro capítulo do livro “The Will to Change: Men, Masculinity and Love” (A Vontade de Mudar: Homens, Masculinidade e Amor) de Bell Hooks, publicado em 2004 pela Washington Square Press. Procura-se homens que amam. Disponível em: <https://traduagindo.com/2024/01/10/bell-hooks-procuram-se-homens-que-amam/>
Harry Harlow. The Nature of Love. American Psychologist, 13, 573-685. 1958. Disponível em: <https://users.sussex.ac.uk/~grahamh/RM1web/Classic%20papers/Harlow1958.pdf>
Tiago Koch. De um pai para seus amigos. Um relato de dezenas de homens. Disponível em: <https://papodehomem.com.br/de-um-pai-para-seus-amigos/>
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